ALJEZUR E O SEU CONCELHO
NUM DOCUMENTO DO SÉCULO XII

(Ruy Ventura)

            Devemos ao arqueólogo Luís Fraga da Silva (um dos membros do activo Campo Arqueológico de Tavira) a divulgação de um documento fundamental para o conhecimento da costa da Península Ibérica em finais do século XII[1]. Trata-se do roteiro naval “De viis maris et de cognitione terrarum et montium et de periculis diversis in eisdem” (“Das vias marítimas e do conhecimento da terra e dos montes e dos perigos diversos que neles há”), texto datado de 1191/1193 e atribuído a Roger de Howden (ou Roger Houedone), que descreve uma viagem entre Inglaterra e a Terra Santa, com elementos geográficos que, segundo Fraga da Silva, chegam a tocar a Índia. Não se tratando de um inédito absoluto, é um documento ignorado em Portugal, dado que a sua publicação ocorreu numa edição suíça praticamente sem divulgação no nosso país[2], a partir de manuscritos do século XV existentes em bibliotecas francesas.
            No que respeita ao sul do território actualmente português, o documento apresenta referências a várias localidades e acidentes geográficos com importância estratégica nas rotas de navegação do período das Cruzadas e da Reconquista: Ulixbone” (Lisboa); Spicel” ou “Spichel” (Cabo Espichel e, talvez, a serra da Arrábida); Alkaz” ou “Alchaz” (Alcácer do Sal); Sines” ou “Cisnes” (Sines); Iunckere” (ribeira e “villa” da Junqueira?); Muntaga” (Cerro da Águia?); Ordunne” ou “Deordimire” (Porto de Odemira, ou seja, Vila Nova de Milfontes); Persekere” (ilha do Pessegueiro); caput Sancti Vincentii” (cabo de São Vicente); Sanguis” ou “Sagris” (Sagres); Lages” ou “Lagus” (Lagos); Portinunt” ou “Portimunt” ou “Porcimunt” (Portimão e rio Arade); Siluis” (Silves); "Sancta Maria de Harun” ou “de Hayrun” (Faro); Lonle” ou “Lole” (Loulé); Tauire” (Tavira); Mertel” (Mértola); Castane” ou “Castala” (Cacela); Dyane” ou “Hodiene” ou “Odiana” (rio Guadiana e algum dos seus portos).
            Na rota seguida por Roger de Howden, entre a ilha do Pessegueiro e o cabo de São Vicente, há uma referência que interessa especialmente aos investigadores que se debrucem sobre história do concelho e da vila de Aljezur. Depois de afirmar que, perto de Sines, existia um “bom porto chamado Ordunne cuja entrada [era] perigosa a não ser que a maré [estivesse] subida[3] (Vila Nova de Milfontes), situado na foz (?) do rio com o mesmo nome (Mira), a oito milhas da ilha do Pessegueiro, o viajante refere o seguinte:
            Deinde per XXXV miliaria sunt fontes aque dulcis qui dicuntur Arisfane. Et ibi est mons in cuius summitate est castellum de Alinzur, et sunt ibi tria maumieria [ou mammeria] Sarracenorum deserta que in lingua Sarracenica dicuntur meskites.
            Ou seja, na versão livre de Luís Fraga da Silva:
            Trinta e cinco milhas depois [da ilha do Pessegueiro] estão as fontes de água doce chamadas Arisfane. E aí há um monte em cujo cume fica o castelo de Alinzur, e existem aí três mammeria (morabitos: edificações de tecto abobadado, em forma de mamas?) abandonadas pelos sarracenos que na língua árabe se chamam meskites (mesquitas!).
            Perante este passo do roteiro naval, penso que não haverá dúvida quanto à identificação dos topónimos referidos: “Arisfane” e “Alinzur” são formas antigas, ou deturpadas pelos ouvidos do viajante, dos actuais “Arrifana” e “Aljezur”. Há no entanto pormenores a que é preciso estar atento.
            Embora no início da passagem o topónimo “Arisfane” se atribua aparentemente apenas a um lugar com fontes de água doce onde, decerto, os navios em viagem se abasteceriam (fossem cristãos ou muçulmanos) (“fontes aque dulcis qui dicuntur Arisfane”), pela leitura da segunda frase, que surge como aprofundamento da primeira, percebe-se que essa designação era atribuída a toda a região. Estando então essa parcela do Barlavento Algarvio ainda sob domínio islâmico, é natural que permanecesse em vigor entre os seus habitantes e entre os que por aí passavam o nome registado pelo geógrafo árabe Yâqût para toda a região costeira a norte do cabo vicentino: “Al-Rihana[4]. Só mais tarde, quando o concelho de Aljezur passou para as mãos do rei cristão de Portugal, “Arrifana” veria o seu âmbito territorial restringido a pouco mais do que uma localidade e sua praia (o que ainda hoje se verifica), a partir do momento em que “Aljezur” passou a designar todo o concelho.
            Na região da Arrifana (conhecida pelos viajantes, ao que parece, pelas suas fontes de água doce) existia “um monte em cujo cimo [estava] o castelo de Alinzur”, ou seja, de Aljezur (“Et ibi est mons in cuius summitate est castellum de Alinzur”). Aparentemente, monte/castelo e fontes não seriam muito distantes – o que ajuda a confirmar a hipótese de vários pontos das margens da foz da actual ribeira de Aljezur terem servido desde tempos imemoriais como locais de paragem nas rotas marítimas e de abastecimento de água (como, por exemplo, “Vale Dom Sancho” e “Fonte das Mentiras[5], entre outros). Nessa década final do século XII, o termo “Aljezur” era apenas o topónimo atribuído ao castelo e, decerto, à povoação (só depois de meados do século XIII passou a designar o concelho de que era sede). O monte onde se situavam tinha (e tem) outro nome (que Roger de Howden não menciona).
            O trecho cuja análise se torna mais difícil é aquele que afirma a existência de três mesquitas, talvez com cúpula hemisférica, abandonadas à data pelos sarracenos: “[…] et sunt ibi tria maumieria [ou mammeria] Sarracenorum deserta que in lingua Sarracenica dicuntur meskites.” Uma leitura superficial conduzir-nos-ia à identificação das três mesquitas abandonadas com o que então restaria do “ribat” desenterrado há poucos anos na ponta da Atalaia, nas proximidades da urbanização do Vale da Telha, no cimo de uma impressionante falésia e finisterra. Segundo defendem alguns investigadores, terá sido abandonado em meados do século XII, o que encaixaria na menção “Sarracenorum deserta” (“abandonadas pelos sarracenos”).
            Há contudo uma descrição arquitectónica que não coincide com os dados conhecidos sobre o “ribat[6]. O número de mesquitas no complexo era muito superior às três indicadas e nenhum delas possuía uma cobertura identificável com as “tria maumieria [ou mammeria]”, cuja designação aponta para as cúpulas hemisféricas tão típicas das “kubas” muçulmanas do norte de África e dos morábitos que ainda hoje se podem observar um pouco por todo o sul de Portugal (transformados em capelas cristãs ou construídos mais tarde sob influência mourisca). Além disso, a expressão “et sunt ibi” parece apontar para uma grande proximidade em relação ao castelo de Aljezur. Tratar-se-á de uma referência à mesquita da localidade, coberta por três cúpulas? Se assim for, desconhecem-se as razões que teriam levado ao seu abandono…
            Não me cabe decidir. As duas hipóteses têm forças e fraquezas. A quantificação das eventuais cúpulas baralha os dados. Nada disto retira, contudo, importância ao documento agora divulgado entre nós.
           
           


[1] A primeira divulgação portuguesa ocorreu no blogue Imprompto em Dezembro de 2010. Pode ser consultada na totalidade nos endereços: http://imprompto.blogspot.com/2010/12/de-viis-maris.html e http://imprompto.blogspot.com/2010/12/de-viis-maris-continuacao.html.
[2] Dalché, Patrick Gautier (ed.) (2005) – Du Yorkshire a L’ Inde. Une “Géographie” urbaine et maritime de la fin du XXe siècle (Roger de Howden?). Droz, Genève: 173 – 229 e 253 – 286.
[3] Sigo a tradução livre de Luís Fraga da Silva.
[4] Ver Rosa Varela Gomes & Mário Varela Gomes (2004) – O Rîbat da Arrifana (Aljezur – Algarve), separata da Revista Portuguesa de Arqueologia, vol. VII, nº 1: 485.
[5] Ver nomeadamente Ruy Ventura (2010) – Memória d’ Alva, Contributos para uma Biografia da Igreja Matriz de Aljezur, Aljezur, Paróquia de Nossa Senhora d’ Alva et alii: 33.
[6] Leia-se o catálogo da exposição Ribat da Arrifana – Cultura material e espiritualidade, editado pela Associação de Defesa do Património Histórico e Arqueológico de Aljezur em 2007.
Intervenção de Ruy Ventura

Intervenção de José António Falcão

Ruy Ventura e José António Falcão

Sessão de autógrafos
(em primeiro plano, o fotógrafo João Mariano)

Sessão de autógrafos:
RV, Presidente da Câmara Municipal de Aljezur, Vereador da Cultura e Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Aljezur.

Aljezur, 18 de Dezembro de 2010:
lançamento do livro Memória d' Alva
de Ruy Ventura
na igreja matriz de Nossa Senhora d' Alva
(fotos de F. Barradinha)